Edit Content
Click on the Edit Content button to edit/add the content.

A UNIDADE INTERNA DA FILOCALIA E SUA INFLUÊNCIA NO ORIENTE E NO OCIDENTE

 KALLISTOS Ware, Metropolita de Diokleia
tradução de monja Rebeca (Pereira)

Um Livro para Todos os Cristãos

No ano de 1782, um enorme volume fólio foi publicado em grego na cidade de Veneza, com o título Φιλοκαλία τῶν Ἱερῶν Νηπτικῶν, a renomada Filocalia dos Santos Padres Népticos (1). Na época de sua primeira aparição, este livro parece ter tido apenas um impacto limitado no mundo ortodoxo grego, enquanto no Ocidente permaneceu por muito tempo totalmente desconhecido. No entanto, em retrospecto, fica claro que a Filocalia foi um dos livros gregos mais significativos publicados durante todo o período dos quatro séculos da Turcocracia; de fato, pode-se dizer que foi o mais significativo e influente de todos. Hoje, depois de dois séculos, ainda é impresso, tanto no grego patrístico original quanto em uma versão grega moderna; e está disponível em tradução, não apenas na maioria das línguas usadas em países tradicionalmente ortodoxos, mas também em praticamente todas as línguas da Europa Ocidental. Tanto o original quanto a tradução, tem sido reimpresso regularmente nos últimos quarenta anos, e na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, sem mencionar outros países, as vendas aumentam a cada ano. Em muitos círculos, tanto não ortodoxos quanto ortodoxos, tornou-se costume falar de uma abordagem caracteristicamente “filocálica” à teologia e à oração, e muitos consideram essa perspectiva “filocálica” o elemento mais criativo da Ortodoxia contemporânea.


Há alguns livros que parecem ter sido compostos não tanto para sua época, mas para as gerações subsequentes. Pouco notados na época de sua publicação inicial, eles só alcançam sua plena influência dois ou mais séculos depois. A Filocalia é exatamente uma dessas obras.

Que tipo de livro é a Filocalia? Na edição original de 1782, há uma página final em italiano: trata-se de uma licenza, uma permissão para publicar, emitida pelos censores católicos romanos da Universidade de Pádua. Nela, eles afirmam que o volume não contém nada “contrário à Santa Fé Católica” (contro la Santa Fede Cattolica) e nada “contrário aos bons princípios e práticas” (contro principi, e buoni costumi) (2). Mas, embora ostente um imprimatur católico romano, a Filocalia é, na verdade, um livro inteiramente ortodoxo. Dos trinta e seis autores diferentes cujos escritos contém — datando do século IV ao XV — todos são gregos, exceto um, que escreveu em latim, São João Cassiano (falecido por volta de 430) ou “Cassiano, o Romano”, como é chamado na Filocalia; e essa exceção é mais aparente do que real, pois Cassiano cresceu no Oriente cristão e recebeu seus ensinamentos de Evágrio do Ponto, o discípulo dos Padres Capadócios.

Quem são os editores da Filocalia? A página de rosto de 1782 traz em letras grandes o nome do benfeitor que financiou a publicação do livro: Ἰωάννου Μαυρογορδάτου (este é talvez o João Mavrogordato que foi Príncipe da Moldávia durante 1743-47). Mas nem na página de título nem em nenhum outro lugar das 1.206 páginas da edição original são mencionados os nomes dos editores. De fato, não há dúvidas sobre sua identidade: trata-se de São Macário de Corinto (1731-1805) e São Nicodemos da Santa Montanha (1749-1809), ambos associados ao grupo conhecido como Kollyvades (3).

Qual foi o propósito de São Macário e São Nicodemos ao publicar esta vasta coleção de textos patrísticos sobre a oração e a vida espiritual? A segunda metade do século XVIII constitui um ponto de virada crucial na história cultural grega. Embora o Império Bizantino tenha caído em 1453, pode-se afirmar em verdade que o período bizantino – ou, mais exatamente, o período românico – da história ortodoxa continuou ininterrupto até o final do século XVIII. A Igreja, portanto, continuou a desempenhar um papel central na vida do povo; apesar das influências ocidentais, sejam elas católicas romanas ou protestantes, a teologia continuou a ser praticada num espírito basicamente patrístico, e a maioria dos gregos, ao olhar para o passado, tomava como ideal o Império Cristão de Bizâncio.

Durante as últimas décadas do século XVIII, contudo, um novo espírito começou a prevalecer entre os gregos cultos, o espírito do helenismo moderno. Este era mais secular em sua perspectiva do que a cultura românica, embora – inicialmente, pelo menos – não fosse explicitamente antirreligioso. Seus protagonistas olhavam para trás, para além do período bizantino, para a Grécia antiga, tomando como ideal a Atenas de Péricles, tão admirada no Ocidente, e seus modelos não eram os Padres Gregos, mas os autores do período clássico. Esses expoentes do helenismo moderno foram inspirados, contudo, não apenas pela reverência ocidental pelos estudos clássicos, mas, de forma mais ampla, pela mentalidade do Iluminismo (Aufklärung), pelos princípios de Voltaire e dos enciclopedistas franceses, pelos ideólogos da Revolução Francesa (que começou apenas sete anos após a publicação da Filocalia) e pelo pseudomisticismo da Maçonaria.

Desnecessário dizer que não devemos imaginar que no final do século XVIII tenha havido uma transição simples, com a tradição românica chegando abruptamente ao fim e sendo totalmente substituída pela perspectiva do neo-helenismo. Pelo contrário, a perspectiva românica continuou a coexistir, lado a lado com o neo-helenismo, na Grécia dos séculos XIX e XX. As duas abordagens se sobrepõem, e sempre houve – e ainda existe hoje – uma interação sutil e complexa entre as duas. Alexander Solzenitsyn observa em “O Arquipélago Gulag” que a linha de demarcação que separa o bem do mal atravessa o centro de cada coração humano (4). Da mesma forma, pode-se dizer que a linha de demarcação entre os românicos e os helênicos atravessa o centro do coração de cada um de nós.

Se Adamantios Korais é o representante mais destacado do helenismo moderno no final do século XVIII, então os porta-vozes mais destacados do espírito românico ou ortodoxo tradicional durante a mesma época são os editores da Filocalia, São Nicodemos e São Macário. Eles e os outros Kollyvades ficaram profundamente perturbados com a crescente infiltração das ideias da Aufklärung ocidental entre seus compatriotas. Acreditavam que a regeneração da Igreja e da nação gregas só poderia ocorrer por meio da recuperação da teologia néptica e mística dos Padres. “Não depositem suas esperanças no novo secularismo do Ocidente; isso não se provará nada além de engano e decepção”. “Nossa única esperança verdadeira de renovação é redescobrir nossa raiz autêntica no passado patrístico e bizantino”. A mensagem deles não é tão atual hoje quanto sempre foi no século XVIII?

Os Kollyvades propuseram, portanto, um programa abrangente e radical de retorno às fontes autênticas do cristianismo ortodoxo. Esse programa tinha três características principais. Primeiro, os Kollyvades insistiam, no campo do Serviço Divino, na fiel observância da tradição litúrgica ortodoxa. Entre outras coisas, eles insistiam que os serviços memoriais (dirigido as amas dos falecidos) fossem celebrados no dia correto, sábado (não domingo); daí o apelido “Kollyvades”. Mas isso estava longe de ser a principal preocupação litúrgica. Muito mais importante era a firme e inabalável defesa da comunhão frequente; isso se provou altamente controverso e trouxe sobre eles perseguição e exílio. Em segundo lugar, eles buscavam promover na teologia um renascimento patrístico; e, nesse contexto, empreenderam um ambicioso programa de publicações, no qual a Filocalia desempenhou um papel central. Em terceiro lugar, dentro da herança patrística, eles enfatizaram acima de tudo os ensinamentos do hesicasmo, representados em particular por São Simeão, o Novo Teólogo, no século XI, e por São Gregório Palamas, no século XIV. É precisamente essa tradição hesicasta que constitui o cerne da Filocalia e que confere aos seus variados conteúdos uma unidade única.

Este é, então, o contexto cultural da Filocalia. Ela faz parte – uma parte fundamental e primária – do ressourcement patrístico que os Kollyvades buscavam promover. Os Kollyvades consideravam os Padres não apenas como uma relíquia arqueológica do passado distante, mas como um guia vivo para os cristãos contemporâneos. Portanto, esperavam que a Filocalia não acumulasse poeira nas prateleiras dos estudiosos, mas que transformasse a vida das pessoas. Pretendiam que ela tivesse um propósito supremamente prático.

Nesse contexto, é significativo que São Nicodemos e São Macário pretendessem que a Filocalia fosse um livro não apenas para monges, mas também para leigos, não apenas para especialistas, mas para todos os cristãos.

O livro destina-se, como afirma explicitamente a página de título, “ao benefício geral dos ortodoxos” (εἰς κοινὴν τῶν Ὀρθοδόξων ὠφέλειαν). É verdade que praticamente todos os textos incluídos foram escritos por monges, tendo em mente o público monástico. Também é verdade que, com exceção de sete breves trechos no final do volume, o material é apresentado no grego patrístico original e não foi traduzido para o demótico, embora São Nicodemos e São Macário tenham usado o demótico na maioria de suas outras publicações. No entanto, apesar das dificuldades linguísticas em muitos textos filocálicos, especialmente nos escritos de São Máximo, o Confessor, e São Gregório Palamas, os editores não deixam dúvidas quanto ao seu propósito e às suas esperanças. Em seu prefácio, São Nicodemos afirma inequivocamente que o livro é dirigido “a todos àqueles que compartilham a vocação ortodoxa, leigos e monges” (5). Em particular, afirma São Nicodemos, a injunção paulina “Orai sem cessar” (1 Tessalonicenses 5:17) não se destina apenas aos eremitas em cavernas e no topo das montanhas, mas também aos cristãos casados com responsabilidades familiares, aos agricultores, comerciantes e advogados, e até mesmo aos “reis e cortesãos que vivem em palácios” (6). É um mandamento universal. O melhor pertence a todos.

São Nicodemos reconheceu que, ao disponibilizar os textos hesicastas ao leitor em geral, estava se expondo a possíveis mal-entendidos e críticas. Assim, ele escreve no prefácio:

Aqui, alguém poderia objetar que não é correto publicar alguns dos textos incluídos neste volume, visto que soarão estranhos aos ouvidos da maioria das pessoas e podem até mesmo ser-lhes prejudiciais (7).

De fato, não existe o risco de que, se esses textos forem disponibilizados para leitura por todos em uma edição impressa, certas pessoas se desviem do caminho por não terem a orientação pessoal de um pai espiritual experiente?

Esta foi uma objeção à qual São Paísios Velichkovsky (1722-94), contemporâneo de São Nicodemos, era profundamente sensível. Por muito tempo, ele não permitiu que sua tradução eslava da Filocalia fosse impressa, precisamente por temer que o livro pudesse cair em mãos erradas; e foi somente sob pressão do Metropolita Gabriel de São Petersburgo que finalmente concordou com sua publicação (8). São Macário e São Nicodemos concordavam plenamente com São Paísios quanto à imensa importância da obediência a um pai espiritual. Mas, ao mesmo tempo, estavam dispostos a correr o risco de imprimir a Filocalia. Mesmo que algumas pessoas se desviem por causa de sua vaidade e orgulho, afirma São Nicodemos, muitas obterão profundo benefício, desde que leiam os textos filocálicos “com toda a humildade e em espírito de renúncia” (9). Se nos falta uma Ancião, então confiemos no Espírito Santo; pois, em última análise, Ele é o único e verdadeiro guia espiritual.

_____

1. Sobre a publicação original da Philokalia e sobre edições e traduções posteriores, ver Kallistos Ware, ‘Philocalie’, em Dictionnaire de Spiritualité 12 (1984), 1336-52. A presente palestra incorpora, de forma revisada, material de dois de meus artigos, onde uma bibliografia mais completa pode ser encontrada: ‘A espiritualidade da Filocalia’, Sobornost incorporando Eastern Churches Review 13:1 (1991), 6-24; ‘Podemos conversar sobre a espiritualidade da Filocalia?’ em Olivier Raquez (ed.), Amore del bello: Studi sulla Filocalia (Atti del ‘Simposio Internazionale sulla Filocalia’, Pontificio Collegio Greco, Roma, novembro de 1989: Communità di Bose, Magnano 1991), 27-52.

2. Φιλοκαλία τῶν Ἱερῶν Νηπτικῶν (Veneza 1782), 1207. Por razões óbvias, a licença não aparece nas edições posteriores da Filocalia publicada em Atenas.

3. Sobre São Macário, cuja memória foi em grande parte ofuscada pela de seu colaborador São Nikodemos, ver Constantino Cavarnos, São Macário de Corinto (Santos Ortodoxos Modernos 2: Instituto de Estudos Gregos Bizantinos e Modernos, Belmont 1972); Konstantinos K. Papoulidis, Μακάριος Νοταρᾶς (1731-1805) Ἀρχιεπίσκοπος πρώην Κορινθίας (Apostoliki Diakonia, Atenas 1974). O estudo mais completo sobre São Nicodemos é de Italo Citterio, L’orientamento ascetico-spirituale di Nicodemo Aghiorita (Alessandria, 1987). Há uma boa visão geral de Daniel Stiernon, “Nicodème l’Hagiorite”, em Dictionnaire de Spiritualité 11 (1981), 234-50. Veja também Constantine Cavarnos, St Nicodemos the Hagiorite (Modern Orthodox Saints 3: Institute for Byzantine and Modern Greek Studies, Belmont, 1974). A obra mais conhecida de São Nicodemos, “A Handbook of Spiritual Counsel”, foi traduzida para o inglês por Peter A. Chamberas, com uma introdução de George S. Bebis (The Classics of Western Spirituality: Paulist Press, Nova York/Mahwah, 1989). Sobre o movimento dos Kollyvades, a monografia de Charilaos S. Tzogas, Ἡ περί τῶν μνημοσύνων ἔρις ἐν Ἁγίῳ Ὄρει κατά τον ιη’αἰῶνα (Ἀριστοτέλειον Πανεπιστήμιον Θεσσαλονίκης, Ἐπιστημονική Ἐπετηρίς τῆς Θεολογικῆς Σχολῆς, Παράρτημα 3: Thessaloniki 1969), embora bem documentado, é um tanto hostil ao movimento. Mais simpático aos Kollyvades é o breve estudo de Konstantinos K. Papoulidis, Tὸ κίνημα τῶν Κολλυβάδων (Apostoliki Diakonia, Atenas 1971). Para mais bibliografia sobre os Kollyvades, consulte Enrico Morini, ‘Ιl Movimento dei “Kollyvadhes”. Rilettura dei contesti più significativativi in ordine alla rinastità spirituale Greco-Ortodossa dei secoli XVIII-XIX’, em Olivier Raquez (ed.), Amore del Bello (nota 1), 137-77.

4. The Gulag Archipelago, vol. 2 (Collins/Fontana, Glasgow 1975), 597.

5. Philokalia I, xxiv. As referências à Filocalia referem-se ao volume e à página da terceira edição grega (Astir/Papadimitriou, Atenas 1957-63), seguidas (quando relevante) por uma referência à tradução para o inglês (=ET), ainda não completa, de G.E.H. Palmer, Philip Sherrard e Kallistos Ware (Faber & Faber, Londres/Boston 1979-95). Esta última não contém a introdução de São Nicodemos.

6. Filocalia I, xxii. Sem dúvida, São Nicodemos tem em vista a disputa entre São Gregório Palamas e o monge Job: veja Patriarca Filoteu Kokkinos, Encomium sobre São Gregório de Tessalônica (PG [=Patrologia Graeca] 151:573B-574B), citado em Filocalia V 107.

7. Filocalia I, xxiii.

8. Dobrotolubiye (Moscou, 1793). Veja Antonios-Aimilios N. Tachiaos, Ὁ Παΐσιος Βελιτσκόφσκί (1722-1794) καὶ ἡ ἀσκητικοφιλολογικὴ σχολή του (Ἑταιρεία Μακεδονικῶν Σπουδῶν, Ἵδρυμα Μελετῶν Χερσονήσου τοῦ Αἴμου 73: Thessaloniki 1964), 113-14.

9. Filocalia I, xxiii-xxiv.
Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram
Picture of Aurora Ortodoxia

Aurora Ortodoxia

Aurora Ortodoxia é um labor online missionário de cristãos ortodoxos brasileiros de distintas jurisdições canônicas, dedicado ao aprofundamento e iluminação daqueles que se interessam em conhecer a Fé Ortodoxa por meio da experiëncia da Santa Tradição.

Picture of Aurora Ortodoxia

Aurora Ortodoxia

Aurora Ortodoxia é um labor online missionário de cristãos ortodoxos brasileiros de distintas jurisdições canônicas, dedicado ao aprofundamento e iluminação daqueles que se interessam em conhecer a Fé Ortodoxa por meio da experiëncia da Santa Tradição.

3 visualizações

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recentes