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DESAFIOS DO TEMPO: ECLESIOLOGIA

MESHCHERINOV Pyotr, Igumeno

tradução de monja Rebeca (Pereira)


Relatório no VI Congresso Teológico Internacional “A vida em Cristo: a moral cristã, a tradição ascética da Igreja e os desafios da era moderna”.


Falando em eclesiologia, é impossível não notar o fato de que a Igreja Ortodoxa não possui definições dogmaticamente precisas e exaustivas do que a Igreja realmente é. A própria Igreja é percebida como um dado, mas esse dado não foi submetido a uma reflexão teológica abrangente. Durante a era dos Concílios Ecumênicos, o foco da atenção teológica estava na Trinitologia e na Cristologia. Após o fim da era dos Concílios Ecumênicos, as questões de eclesiologia também deixaram de ser o foco do pensamento da Igreja. A falta de aprofundamento teológico da eclesiologia não é apenas uma questão teórica: coloca-nos diante de nós problemas bastante práticos que, na minha opinião, não permitem à consciência da Igreja moderna responder adequadamente aos desafios dos tempos.


Para entender isso, precisamos, pelo menos, definir em termos gerais o que é a verdadeira religiosidade.

Todo fenômeno deste mundo está repleto de morte. Tudo o que é natural nasce, desenvolve-se até uma certa plenitude, depois desaparece e morre. A vida do homem e da sociedade chega ao fim; impérios deixam de existir, formas sociossociais paradigmáticas morrem; obras de arte são destruídas, etc. Tudo o que está enraizado nos elementos deste mundo está sujeito ao sofrimento, à doença e à morte. A Igreja é o único fenômeno na terra cujo vetor é exatamente o oposto: não do nascimento ao florescimento, e depois ao murchamento e à morte, mas através da morte (e morte na cruz) até o nascimento para a vida eterna. Pela graça de Cristo, a Igreja remove o homem do poder determinista do mundo decaído e já aqui, nesta vida terrena, coloca o homem diante de Cristo, transfere sua existência do modo terreno para o celestial, de modo que o cristão, existindo de modo mortal na terra corruptível, já prova – é claro que seria mais preciso dizer “antecipa”, como através de um vidro obscuramente, de uma forma obscura (1 Co 13:12), mas ao mesmo tempo de forma completamente realista – o Reino de Deus, que veio com poder (Mc 9:1).

A verdadeira eclesiologia, como afirmou o destacado teólogo do século XX, o Protopresbítero Alexander Schmemann, é sempre escatológica. A peculiaridade dessa escatologia é que ela não se realizará no fim dos tempos, mas se realiza para o cristão já aqui e agora. “A Igreja é a presença no tempo, na história, do santo e do sagrado, mas não segundo o princípio da dicotomia “sagrado – profano”, mas segundo o princípio escatológico – pela possibilidade de relacionar tudo no tempo e na história com o Reino de Deus… A vida (da Igreja – I.P.) está sempre “escondida com Cristo em Deus” (Col. 3,3), vive verdadeiramente não da história, mas do Reino de Deus”[1]. “A Igreja primitiva conquistou apenas pela alegria escatológica, pela certeza – por si só – a experiência do Reino de Deus, a “vinda em poder”, o sentimento, a visão da “aurora do dia misterioso”… A Igreja não vive pela “igreja”, não pela “redução religiosa” (organização, clericalismo, etc.) e não pelo “mundo”,… mas pelo Reino. É – o mistério do Reino… A Igreja vive pelo Reino de Deus, nisto consiste a sua vida, verdadeiramente sua, não redutível a nada no mundo. A Igreja é chamada a levar esta experiência do Reino ao mundo, e isto… significa – à realidade”[2]. “O Reino de Deus é a meta da história, e o Reino de Deus já está agora ‘entre nós’, ‘dentro de nós’… O Cristianismo é um acontecimento histórico único, e o Cristianismo é a presença deste acontecimento no presente – como a consumação de todos os acontecimentos e da própria história. E para que isso seja assim, somente para isso é necessário, somente nisso está a Igreja, sua “essência” e seu “significado”[3].

Segundo a profunda convicção do Protopresbítero Alexander Schmemann, a essência da Igreja reside na correlação entre o Reino de Deus, que veio em poder (Mc 9,1), e a existência terrena. Mas tal correlação é um fenômeno exclusivamente religioso[4]. A eclesiologia genuína é, portanto, a esfera do religioso – ou seja, a colocação dos significados, objetivos e motivações de toda a vida exclusivamente no Reino de Cristo, que não é deste mundo (João 18:36) (o que não exclui de forma alguma a atividade ativa na terra; estamos falando da hierarquia de valores).

Quando, devido a vários processos (que precisam ser discutidos separadamente), os objetivos, significados e motivações dos cristãos ortodoxos que compõem a comunidade da igreja são deslocados desta esfera religiosa, então a Igreja imediatamente cai sob a influência dos elementos mortais do mundo decaído, e a consciência eclesiológica na vida prática da igreja muda. Pela Igreja – o Reino não deste mundo, que entra em nossa vida, se funde com ela, a anima – devido à sua irreligiosidade, à mundanidade de objetivos e motivações, as coisas começam a ser entendidas como inteiramente terrenas. Como resultado, na visão de mundo e na vida de muitas pessoas da igreja, o conteúdo religioso é relegado a segundo plano, a autoconsciência da igreja se torna não religiosa, transformando-se em uma ideologia, e a Igreja começa a se perder como o Corpo de Cristo sobrenatural, tornando-se cada vez mais apenas um fenômeno político, social, cultural e econômico.

Como resultado, na visão do mundo e na vida de muitas pessoas da igreja, o conteúdo religioso é relegado a um segundo plano, a autoconsciência da igreja se torna não religiosa, transformando-se em uma ideologia, e a Igreja começa a se perder como o Corpo de Cristo sobrenatural, tornando-se cada vez mais apenas um fenômeno político, social, cultural e econômico. O resultado dessa integração ao mundo não foi apenas a influência da Igreja na sociedade e na cultura — uma influência que é, sem dúvida, valiosa e benéfica — mas também o fato de que, da existência cotidiana da Igreja, a própria religiosidade (como algo sobrenatural) pelo menos desapareceu em segundo plano. Isto está obviamente ligado à falta de desenvolvimento da eclesiologia – estas questões não foram sentidas na prática (sabe-se que os Concílios Ecuménicos não discutiram temas pré-planeados, mas responderam especificamente aos desafios da época, que abalaram certos fundamentos da fé); e essa insensibilidade, por sua vez, surgiu do fato de que a Igreja, tendo se estabelecido fundamentalmente no mundo decaído, deixou de reconhecer e experimentar claramente sua dimensão escatológica (o desejo de permanecer precisamente em um sentimento prático da Igreja como a escatologia deu origem ao monaquismo). A consequência de tudo isso foi o enfraquecimento gradual da consciência religiosa e sua substituição por uma consciência não religiosa, o que levou ao fato de que o sentimento cotidiano da Igreja, a eclesiologia prática de muitos cristãos, em um grau ou outro, foi privado do sentimento religioso, da visão de mundo religiosa como tal.

Chamamos isso de secularização. Não é preciso muito para provar que a história humana, pelo menos desde a Idade Média, tem sido um processo de secularização. Geralmente, atribuímos isso a algumas forças externas. Mas nenhuma quantidade de astúcia de forças externas responderá à questão de por que a Igreja Universal perdeu constantemente sua imunidade espiritual, de modo que primeiro a metade ocidental a abandonou, depois ela se dividiu e então massas de pessoas começaram a se afastar do Cristianismo. Não falarei sobre processos desse tipo na parte ocidental da Igreja, mas chamarei sua atenção para um fator significativo que influencia a distorção da consciência eclesiológica, que tem sido característica da Ortodoxia por muitos séculos. Na época bizantina, a Igreja se identificava com o Império. Ortodoxo significava (não em alta teologia, é claro, mas no sentido eclesiológico prático) um romano, um bizantino. Então, na Nova Era, a Igreja, inicialmente construída com base em um princípio territorial, identificou-se com uma ou outra nação. Tal identificação é historicamente justificada; e se for reconhecida como relativa e pedagógica, pode frutificar na esfera cultural, social e pastoral da atividade eclesiástica. Mas, assim que a relatividade desse fator deixa de ser reconhecida, surgem imediatamente enormes problemas eclesiológicos. Para gregos, sérvios e russos, a Ortodoxia está se desviando da verdade universal de Cristo para uma tradição nacional completamente terrena, antes de tudo[5].

E, na minha opinião, é precisamente essa circunstância que representa um dos desafios mais importantes da atualidade para nós. Na Ortodoxia, que está dividida em nações, precisamente aqueles processos que indiquei acima começaram a ocorrer. A eclesiologia ortodoxa sobrenatural de Cristo está sendo substituída — não nos livros de teologia, mas no nível de pensamentos e sentimentos de um número considerável de cristãos ortodoxos — pela pseudoeclesiologia terrena do estado, da nação, do povo como tal. A Igreja Ortodoxa começa a ser percebida como algo que serve ao Estado; os objetivos e significados dentro da estrutura de tal sistema de visões não são a realização das possibilidades de comunhão com Deus em Cristo para as pessoas (que é a única tarefa da Igreja terrena institucional), mas o serviço político, ideológico e econômico.

Este processo tem etapas bastante visíveis. Não amem o mundo, nem as coisas do mundo (1 João 2:15), ordena o Apóstolo. Reconhecendo-se como cristãos, mas ao mesmo tempo caindo na ideologia eclesiológica equivocada, os ortodoxos afastam sua nação e seu Estado do mundo decaído em suas mentes e corações – como se viver em um determinado território com uma determinada história fosse em si uma garantia de genuína religiosidade e fizesse das pessoas a Igreja de Cristo. Conceitos puramente eclesiológicos – como conciliaridade, por exemplo – são ilegalmente expandidos e aplicados a todo o povo, independentemente do estado de sua fé e moralidade. O “povo de Deus” bíblico é identificado com “o povo como tal”. A moral evangélica está sendo eliminada da eclesiologia prática, porque o conceito de “bem” agora está sendo aplicado não aos mandamentos do Evangelho voltados às personalidades de outras pessoas, mas ao benefício e à grandeza do Estado, à “lealdade às tradições históricas”, sejam elas quais forem do ponto de vista do Evangelho, ao chauvinismo, etc. A segunda etapa, consequência completamente natural de tudo isso, é a deificação da nação e do Estado e a transferência da consciência eclesiológica da transcendência de Cristo inteiramente para eles.

Como resultado disso — e agora passo para questões puramente práticas da atualidade — a Igreja não consegue agir como deveria, respondendo aos desafios dos tempos. A verdadeira eclesiologia dedica-se, antes de tudo, à salvação do indivíduo em Cristo. A “massa crítica” de tais indivíduos cristãos que, enquanto vivem na terra, colocam todos os seus objetivos e toda a sua motivação na busca da cidade vindoura (Hb 13:14), cujo arquiteto e construtor é Deus (Hb 11:10) tem um impacto eclesiástico – moral e espiritual – na sociedade, tanto quanto possível na versão do mundo decaído em que o Senhor nos destinou a viver. Tal eclesiologia obviamente serve a Cristo em primeiro lugar. A falsa eclesiologia serve a outros senhores (Mt 6:24) – nação e o Estado, e assim seculariza objetivamente a Igreja, tornando-a refém dos acidentes políticos, da ideologia vigente e do estado moral vigente do povo[6].

Gostaria de chamar a atenção para este ponto. Ao se opor ativamente à secularização, a Igreja, infelizmente, pouco alcança. Por que isso acontece? Precisamente, na minha opinião, porque a própria vida da Igreja moderna se desenvolve dentro de um paradigma secular. Baseamos a luta contra a secularização no fato de que um Estado, uma nação, uma cultura é mais espiritual e tradicional do que outros Estados, nações e culturas. Esquematicamente falando, a correlação entre “espiritual – não espiritual”, “eclesiástico – secularizado” em nossa consciência eclesiológica prática atual segue a linha de “uma (nossa) civilização – outra civilização (estrangeira)”. Mas a questão toda é que, do ponto de vista do Evangelho e da genuína religiosidade em geral, toda civilização terrena é apenas uma variante do mesmo mundo igualmente caído, que jaz no mal (1 João 5:19). De fato, a linha divisória segue a linha: “A Igreja é um Reino que não é deste mundo / A Igreja é parte do reino deste mundo”.

Este é o grande desafio e o grande questionamento da eclesiologia ortodoxa atual, de cuja resposta depende a formulação das questões que constituem o tema central da nossa conferência. A vida em Cristo é um prelúdio ao Reino dos Céus para o homem com a ajuda da Igreja ou um contraste com outro estilo, outra cultura de vida numa dimensão exclusivamente terrena? Cristo, revelado em Sua Igreja, é o principal, o único, o valor exclusivo, ou a Igreja é apenas uma parte tradicional da vida do povo, uma parte de valores estatais, geopolíticos e ideológicos? A Igreja serve a Cristo em seu povo ou simplesmente serve ao seu povo em sua vida terrena? O Cristianismo é secular ou perseguido – em sua essência, mesmo que não seja fisicamente perseguido? A Igreja Ortodoxa é universal e sobrenatural – ou, tendo se tornado uma subcultura restrita, atende às necessidades ideológicas imediatas de suas nações e governos?

Todas essas questões não são de forma alguma especulativas. Como resolveremos na prática os problemas acumulados da Igreja que enfrentamos? A metodologia dessas decisões, na minha opinião, reside precisamente no plano da eclesiologia verdadeira ou falsa. Se servimos e veneramos a Santa Rus’, este é um vetor da atividade da Igreja. Se tentarmos cumprir o mandamento de adorar o Senhor teu Deus e servir somente a Ele (Mateus 4:10), é completamente diferente.

Tudo o que foi dito não é um apelo para abandonarmos a atividade social. A Igreja, sem dúvida, deve e irá trabalhar com todas as suas forças nas esferas social, cultural e em todas as esferas da vida da nossa sociedade. Mas a nossa Igreja e o trabalho eclesiológico-social devem partir dos fundamentos eclesiológicos corretos, quando a Deus são dadas as coisas que são de Deus, e a César as coisas que são de César (Mt 22:21). A Igreja não pode render honras divinas a César e agradar a Deus com os métodos de César. Todos os problemas que inevitavelmente surgem na existência terrena da Igreja devem ser resolvidos de uma maneira diferente, evangélica – afinal, o Senhor nos disse: não será assim entre vós (Mt 20:26), como entre os príncipes das nações… Isto exigirá de nós grandes esforços morais e espirituais; mas eles não podem ser acumulados no quadro de uma eclesiologia incorreta.

Um documento da Igreja que expressa uma visão de mundo eclesiológica verdadeiramente religiosa, “Os Fundamentos do Conceito Social da Igreja Ortodoxa Russa”, pode servir como um guia para a correta compreensão e implementação das atividades externas da Igreja. O fato de que este documento quase não tem influência em nossa realidade ortodoxa atual, que ele é usado em grau muito pequeno nas disputas internas da Igreja, às vezes acaloradas — por exemplo, sobre formas de missão, sobre a avaliação de nossa história, etc. — é uma prova convincente dos problemas em nossa consciência eclesial dos quais falei acima.
Portanto, para concluir, repetirei a ideia principal. Na minha opinião, o maior problema que enfrentamos é a indefinição da cosmovisão religiosa cristã em nossa eclesiologia prática, cuja consequência é a secularização da vida eclesiástica, que se manifesta, entre outras coisas, na ausência de uma visão clara, que não é apenas uma parte do mundo que difere da civilização russa em termos mentais, culturais e sociais, que é secular, mas o mundo inteiro, incluindo o mundo ortodoxo e o mundo russo… A eclesiologia deste mundo é, na minha opinião, o principal desafio do nosso tempo e o principal obstáculo para uma vida ortodoxa genuína em Cristo.

_____

[1] Arcipreste Alexander Schmemann. Diários. Moscou, 2005, p. 124.
[2] Arcipreste Alexander Schmemann. Diários. Moscou, 2005, pp. 141-142.
[3] Arcipreste Alexander Schmemann. Diários. Moscou, 2005, p. 483.
[4] Cf. Arcipreste Alexander Schmemann. Diários. Moscou, 2005, pp. 58, 219, 372-373, etc.
[5] O Prof. Dvorkin nos seus “Ensaios sobre a História da Igreja Ortodoxa Ecumênica” (Nizhny Novgorod, 2005, pp. 890-891) fornece informações de que na década de 1920 Kemal Ataturk tinha a intenção de criar a Igreja Ortodoxa Turca, o que causou resistência desesperada do clero grego, o que dificultou o trabalho missionário entre os turcos, chegando até mesmo a censurar e anatematizar os missionários.
[6] Um exemplo flagrante de como a eclesiologia se torna refém do nacionalismo é, na minha opinião, a atual situação eclesial-social nos Balcãs.

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Aurora Ortodoxia é um labor online missionário de cristãos ortodoxos brasileiros de distintas jurisdições canônicas, dedicado ao aprofundamento e iluminação daqueles que se interessam em conhecer a Fé Ortodoxa por meio da experiëncia da Santa Tradição.

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